quinta-feira, 1 de julho de 2021

A Puta da Gravidade

 Ou sobre vir morrer a portugal.

Voltar a casa não só lhe tira o medo como a pena de morrer. Não que ela tenha pressa ou faça questão de ir já. Aliás, acreditamos que alguma força externa ou alguém terá que a levar porque dificilmente - ela decidiu isto - irá pelo seu próprio pé. Mas convenhamos que a terra mãe tem um declive acentuado. Como se a gravidade neste lugar fosse mais forte. "Porque aqui é muito fácil distraires-te, escorregar e deixares-te ir. Se calhar é do tempo, não sei. Mas qualquer coisa nesta terra convida ao relaxamento do tónus muscular e quando dás por ti cais numa linha do comboio ou coisa parecida. Como se cai tão facilmente aqui? - deverá questionar-se um não nativo com raízes algures num lugar longínquo, mais fértil e menos arenoso. Porque nesta terra não há nada onde te possas agarrar. Não tens nada a perder. É fácil cair. E tudo é muito difícil quando nos sentimos tão pesados. Caímos em qualquer lado e achamos normal. Deixamo-nos ficar de vez em quando porque estamos muito cansados e porque, de certeza, vamos tropeçar ali mais à frente outra vez. E na verdade não faz muita diferença se o comboio passar ou não. Estamos cansados o suficiente para sentir que não vamos dar por isso. Aqui o mato aqui morre na seca ou na queima mas morre sempre.

Eu fui um tempo para longe, para um lugar sem gravidade, e esqueci do meu peso original. Uma pessoa convence-se de que é gente e quando menos espera tropeça e lembra-se do calo e massa óssea que perde em lugares com menos gravidade, contraste e textura"

Ela desconfia que quem voluntariamente retorna só o faz porque quer ver sangue. Ou é suicida ou sádica.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

The cleaner who couldn't mop the rain





Rules say you shouldn't work while being sick. "For the greater good", they say. You're expected to be respectful and to protect everyone's health by doing that. 

But I feel sick more than half of the time. I've been working sick for all my working years. This was expected from me as well. So I can no longer tell the difference between being a little sick and having a "bad attitude". I can try my best but in truth I'm sick of it all. Everything. Every second I'm not living for myself and do what I can to enjoy my life or, at the very least, make this a better place makes me sick and resentful enough to grow a cancer that could kill an entire generation. That's why I'm not afraid of dying. Nor I feel sorry for anyone dying. I'm not eager too. Sometimes I feel this disease is doing everyone a favor. 

But don't ask me to choose homelessness for everyone's sake. Don't expect people who have been working sick for all their lives to be now considerate and do one more sacrifice for the greater good. We're too tired to care. You sure never did. Now we're just too sick to give a shit.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Pessoas daninhas



E eventualmente, um dia Ermelinda percebe que, de tanto varrer, já não sabe diferenciar o lixo das flores. Se é verdade que tudo - lixo e flores - é bonito, colorido e interessante o suficiente para merecer uma observação atenta e até ser guardado como um tesouro, também é verdade que ela aprendeu a varrer tudo: lixo, flores e a própria vida. Sim, tudo é passível de ser varrido - aprendeu ela, que já não era nova quando veio ao mundo - e é necessário fazê-lo, se quer garantir a si e a quem ama um abrigo seguro que os proteja do bulício do mundo. Um canto seu, onde possa dormir sem sobressaltos.
Apesar disso, ela ainda observa as flores. E o lixo. E as plantas vivas às quais lhe dão ordem para arrancar. Chamam-lhe "daninhas". Ermelinda não sabe o que são plantas "daninhas". Só que é vida, e que ela colhe e varre junto com o lixo e as flores, como tudo o resto. Sabe que, para além de varrer, agora também mata plantas. E que se habituou a isso. Mas não pode perder muito tempo a pensar nestas coisas. Ou talvez não queira. A ideia de não ter onde dormir aterroriza-a demasiado. Mesmo sabendo que não é o facto de ter um lugar seguro para onde ir todas as noites que a faz dormir melhor.
Ermelinda sente-se vazia. Parece-lhe que o que lhe resta de vida é o calo imenso que o seu corpo se tornou.  Como uma casca rija, quase insensível, sem nada lá dentro. As próprias ervas que arranca lhe parecem mais vivas que ela. E o mundo parece-lhe profundamente injusto. Mas, tal como as plantas, ela não saberia o que fazer em alternativa. E deixa-se colher como elas.
Ermelinda dorme de olhos abertos, tal o cansaço. E não percebe como é que a fisiologia do seu corpo não pára simplesmente.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O rei zarolho que governava um reino de cegos não tinha coração. Todos os zarolhos que nasceram com um coração enlouqueceram ou fazem comédia. E aquele dos raros de coração a quem nasceram dois olhos, arrancou a lança que lhe espetaram no peito, e com ela furou os dois olhos que tinha, porque nem morrendo suportava ver tanta miséria.


E isto sou eu a fazer comédia. Porque já me sinto a enlouquecer

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

- Tempo não é dinheiro, não senhora. Tempo de vida é tempo de vida e não há dinheiro que o pague nem que o faça voltar para trás.

Lixo




Fora a D. Ermelinda varrer o Lixo do parque, como lhe ordenaram, e o Lixo do parque a D. Ermelinda varreu. Duas horas depois foi chamada à presença da jovem patroa.
- Pedi-lhe que varresse o Lixo, não foi?
- Oh! E eu varri, D. Susana..
- Como varreu? E o que são aquelas florinhas todas espalhadas pelo parque a fora?
D. Ermelinda fica baralhada e engasga-se um bocadinho:
- Mas.. pediu-me para varrer o Lixo - e hesitou porque de repente sentiu que a resposta lhe pareceu um pouco absurda naquele contexto - e desde quando as flores são Lixo, senhora? - pensou mas não disse. Acenou cordialmente - concerteza, senhora. Vou já tratar disso. Peço desculpa.
Pegou novamente na vassoura e na pá e encaminhou-se, diligente, para o parque. Antes de começar a varrer olhou para as nuvens no céu e questionou-se se também seriam do tipo de coisa que incomodaria aquela jovem senhora. Sorriu - bom, quanto a isso não posso fazer nada. E enquanto varria ia entretida pensando e analisando - qual seria o seu limite de tolerância? Em determinados contextos concerteza que enlouquece - ou eu enlouqueço..
Suspirou e sentiu-se velha demais para responder aos caprichos deste novo mundo.

Agora

Porque tinha metabolismo lento, em especial nos dias de baixa pressão atmosférica, Raquel sabia que, mais tarde ou mais cedo, lhe faltariam forças, físicas e de espírito, para vestir a máscara social necessária para cumprir as obrigações laborais adequadamente. E naquele dia frio de inverno sentia-se particularmente quieta e com tendência a hibernar. Com muito pouca paciência para ouvir discursos longos e encalorados sobre como aumentar a produtividade e as receitas da empresa. E não se conteve, cansada de ver gente a lutar contra a sua natureza, contra a própria Natureza.
- O senhor não pode impedir que o bolor cresça nas paredes. Nem que a ferrugem corroa o metal das suas máquinas. Nem que o fastio ou revolta se apoderem um dia dos seus subordinados. Pode até lutar contra isso a vida inteira se quiser, mas eu aposto que o senhor já tem saudades de respirar. Usando todo o espaço dos seus pulmões. E de se sentir vivo. e que o tempo não existe.
Não teve resposta. Suspirou, muito cansada do mundo, tirou o avental e saiu.
Chegou a casa e dormiu. Acordou na Primavera.