sexta-feira, 7 de junho de 2013

Pessoas daninhas



E eventualmente, um dia Ermelinda percebe que, de tanto varrer, já não sabe diferenciar o lixo das flores. Se é verdade que tudo - lixo e flores - é bonito, colorido e interessante o suficiente para merecer uma observação atenta e até ser guardado como um tesouro, também é verdade que ela aprendeu a varrer tudo: lixo, flores e a própria vida. Sim, tudo é passível de ser varrido - aprendeu ela, que já não era nova quando veio ao mundo - e é necessário fazê-lo, se quer garantir a si e a quem ama um abrigo seguro que os proteja do bulício do mundo. Um canto seu, onde possa dormir sem sobressaltos.
Apesar disso, ela ainda observa as flores. E o lixo. E as plantas vivas às quais lhe dão ordem para arrancar. Chamam-lhe "daninhas". Ermelinda não sabe o que são plantas "daninhas". Só que é vida, e que ela colhe e varre junto com o lixo e as flores, como tudo o resto. Sabe que, para além de varrer, agora também mata plantas. E que se habituou a isso. Mas não pode perder muito tempo a pensar nestas coisas. Ou talvez não queira. A ideia de não ter onde dormir aterroriza-a demasiado. Mesmo sabendo que não é o facto de ter um lugar seguro para onde ir todas as noites que a faz dormir melhor.
Ermelinda sente-se vazia. Parece-lhe que o que lhe resta de vida é o calo imenso que o seu corpo se tornou.  Como uma casca rija, quase insensível, sem nada lá dentro. As próprias ervas que arranca lhe parecem mais vivas que ela. E o mundo parece-lhe profundamente injusto. Mas, tal como as plantas, ela não saberia o que fazer em alternativa. E deixa-se colher como elas.
Ermelinda dorme de olhos abertos, tal o cansaço. E não percebe como é que a fisiologia do seu corpo não pára simplesmente.

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