sexta-feira, 7 de junho de 2013

Pessoas daninhas



E eventualmente, um dia Ermelinda percebe que, de tanto varrer, já não sabe diferenciar o lixo das flores. Se é verdade que tudo - lixo e flores - é bonito, colorido e interessante o suficiente para merecer uma observação atenta e até ser guardado como um tesouro, também é verdade que ela aprendeu a varrer tudo: lixo, flores e a própria vida. Sim, tudo é passível de ser varrido - aprendeu ela, que já não era nova quando veio ao mundo - e é necessário fazê-lo, se quer garantir a si e a quem ama um abrigo seguro que os proteja do bulício do mundo. Um canto seu, onde possa dormir sem sobressaltos.
Apesar disso, ela ainda observa as flores. E o lixo. E as plantas vivas às quais lhe dão ordem para arrancar. Chamam-lhe "daninhas". Ermelinda não sabe o que são plantas "daninhas". Só que é vida, e que ela colhe e varre junto com o lixo e as flores, como tudo o resto. Sabe que, para além de varrer, agora também mata plantas. E que se habituou a isso. Mas não pode perder muito tempo a pensar nestas coisas. Ou talvez não queira. A ideia de não ter onde dormir aterroriza-a demasiado. Mesmo sabendo que não é o facto de ter um lugar seguro para onde ir todas as noites que a faz dormir melhor.
Ermelinda sente-se vazia. Parece-lhe que o que lhe resta de vida é o calo imenso que o seu corpo se tornou.  Como uma casca rija, quase insensível, sem nada lá dentro. As próprias ervas que arranca lhe parecem mais vivas que ela. E o mundo parece-lhe profundamente injusto. Mas, tal como as plantas, ela não saberia o que fazer em alternativa. E deixa-se colher como elas.
Ermelinda dorme de olhos abertos, tal o cansaço. E não percebe como é que a fisiologia do seu corpo não pára simplesmente.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O rei zarolho que governava um reino de cegos não tinha coração. Todos os zarolhos que nasceram com um coração enlouqueceram ou fazem comédia. E aquele dos raros de coração a quem nasceram dois olhos, arrancou a lança que lhe espetaram no peito, e com ela furou os dois olhos que tinha, porque nem morrendo suportava ver tanta miséria.


E isto sou eu a fazer comédia. Porque já me sinto a enlouquecer

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

- Tempo não é dinheiro, não senhora. Tempo de vida é tempo de vida e não há dinheiro que o pague nem que o faça voltar para trás.

Lixo




Fora a D. Ermelinda varrer o Lixo do parque, como lhe ordenaram, e o Lixo do parque a D. Ermelinda varreu. Duas horas depois foi chamada à presença da jovem patroa.
- Pedi-lhe que varresse o Lixo, não foi?
- Oh! E eu varri, D. Susana..
- Como varreu? E o que são aquelas florinhas todas espalhadas pelo parque a fora?
D. Ermelinda fica baralhada e engasga-se um bocadinho:
- Mas.. pediu-me para varrer o Lixo - e hesitou porque de repente sentiu que a resposta lhe pareceu um pouco absurda naquele contexto - e desde quando as flores são Lixo, senhora? - pensou mas não disse. Acenou cordialmente - concerteza, senhora. Vou já tratar disso. Peço desculpa.
Pegou novamente na vassoura e na pá e encaminhou-se, diligente, para o parque. Antes de começar a varrer olhou para as nuvens no céu e questionou-se se também seriam do tipo de coisa que incomodaria aquela jovem senhora. Sorriu - bom, quanto a isso não posso fazer nada. E enquanto varria ia entretida pensando e analisando - qual seria o seu limite de tolerância? Em determinados contextos concerteza que enlouquece - ou eu enlouqueço..
Suspirou e sentiu-se velha demais para responder aos caprichos deste novo mundo.

Agora

Porque tinha metabolismo lento, em especial nos dias de baixa pressão atmosférica, Raquel sabia que, mais tarde ou mais cedo, lhe faltariam forças, físicas e de espírito, para vestir a máscara social necessária para cumprir as obrigações laborais adequadamente. E naquele dia frio de inverno sentia-se particularmente quieta e com tendência a hibernar. Com muito pouca paciência para ouvir discursos longos e encalorados sobre como aumentar a produtividade e as receitas da empresa. E não se conteve, cansada de ver gente a lutar contra a sua natureza, contra a própria Natureza.
- O senhor não pode impedir que o bolor cresça nas paredes. Nem que a ferrugem corroa o metal das suas máquinas. Nem que o fastio ou revolta se apoderem um dia dos seus subordinados. Pode até lutar contra isso a vida inteira se quiser, mas eu aposto que o senhor já tem saudades de respirar. Usando todo o espaço dos seus pulmões. E de se sentir vivo. e que o tempo não existe.
Não teve resposta. Suspirou, muito cansada do mundo, tirou o avental e saiu.
Chegou a casa e dormiu. Acordou na Primavera.